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Bruno, o monstro nosso de cada dia

Por Louise Caroline

Estamos estarrecidos diante do noticiário nacional cotidiano que, há aproximadamente um mês, apresenta-nos como num enredo novelesco a crueldade do caso Bruno, goleiro do flamengo e sua Eliza (melhor não adjetivar a condição dela na história).

Em todos os canais, programas, horários, com maior ou menor seriedade, a história apresenta seus personagens e já estamos íntimos de Macarrão – do amor eterno, Sérgio – o primo vingativo, o “menor” – drogado assustado, o pai de Eliza – pedófilo estuprador, o ex-PM assassino frio com longa ficha, Bruno – o monstro e suas amantes, namoradas, noivas, a esposa – cúmplice, prostitutas, mansões, orgias e uma infância de abandono e miséria.

Tudo contado com roteiro e produções cinematográficas. Reconstituições em gráfico e com atores, gravações telefônicas, gravações em celular, depoimentos policiais e na Ana Maria Braga, acesso estranhamente “exclusivo” aos autos e a peças, provas do crime.

Vem à mente, de súbito, os casos do menino João Hélio, da pequena Isabella. Histórias que, de tão cruéis, aparentam excepcionalidade. Quem sabe uma manifestação espiritual maligna se acometeu sobre esses monstros? Quem arrastaria um menino? Jogaria a filha pela janela? Mataria para não pagar uma mísera pensão? Jogaria corpos aos cachorros?

Não são excepcionalidades. Nem monstros os autores de tamanha brutalidade. É essa a cultura social vigente. A violência, a banalidade da vida, o estress, o consumismo, o deslumbramento diante do poder.

No caso de Bruno, a reconstituição do que chamamos violência doméstica e sexista. A violência contra a mulher. Tema que cotidianamente produz casos dignos de toda parafernália midiática, como o vídeo da execução ao vivo da cabelereira em Minas Gerais ou mesmo o caso Mizael e Mércia, cujo corpo foi encontrado numa represa e cuja história divide as matérias jornalísticas atuais.

Neste caso, também se configura violência doméstica. Uma história típica de ciúmes e fim de relacionamento, mistura bombástica que diariamente impõe às mulheres, principalmente, uma vida de terror, perseguição, agressões e morte.

Pernambuco ocupa o terceiro lugar no ranking nacional de morte de mulheres. Tem índice 30% superior à média nacional e quase o dobro da média de todo nordeste. Em Caruaru, o Centro de Referência da Mulher “Maria Bonita”, órgão municipal que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica e sexista, realizou 430 atendimentos apenas de janeiro a junho deste ano. Já a delegacia da mulher recebeu 588 denúncias no mesmo período!

Cada uma das histórias poderia ser manchete principal dos jornalões brasileiros. Mulheres humilhadas, agredidas, estupradas. Do outro lado, os monstros de cada uma, homens convencidos de seu poder e autoridade perante as mulheres, suas mulheres. O sentimento de posse, a imposição da submissão feminina, a diminuição do valor humano das prostitutas. Elementos que fazem da sociedade brasileira um mau exemplo na constituição da igualdade entre os homens e as mulheres. Uma cultura machista que impõe infelicidade e, às vezes, é lembrada em grandes casos pirotécnicos. Na maioria dos dias, ignorada como parte da vida social.

É revoltante ver que mesmo os avanços legais, como a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, são atacados ou por desdém cultural, ou pelo judiciário que de forma aberrante já aplicou a Lei em favor de homens e que, agora, tem uma mulher como algoz. A juíza titular do 3º Juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro, Ana Paula Delduque Migueis Laviola de Freitas, que recebeu denúncia de Eliza contra Bruno, alegou que “a Lei Maria da Penha não se aplicava ao caso, visto que eles não mantinham relação afetiva estável”.

Ora, sequer é requisito que haja relação afetiva! Que dirá estável! A Lei Maria da Penha veio para proteger as mulheres em relações domésticas e sexistas. A Lei se estende às prostitutas, que mesmo em um único encontro com um homem já estabelecem com ele uma relação sexista. Também abrange as relações já findas, portanto, não estáveis. Pecou pelo rigor legal ou pela cultura social de desprezo às mulheres que se deitam por dinheiro? Aliás, esse foi um elemento utilizado por Bruno, seus comparsas e pela mídia para desqualificar o crime. Como se o direito à vida selecionasse a conduta moral dos cidadãos. Seria um julgamento deveras difícil esse. Não tem direito quem recebe, mas tem direito quem paga?

São simbólicos os casos expostos às nossas vistas pela televisão. Mas são apenas a ponta de um grande iceberg da violência contra a mulher que acontece à nossa volta diariamente. Ou encaramos os fatos com racionalidade e política pública para combater o machismo latente na sociedade brasileira, ou seguiremos elegendo os monstros da vez e condenando-os individualmente até que novos monstros nos façam relembrar.

Louise Caroline -Secretária Especial da Mulher da Prefeitura de Caruaru

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Crime passional não existe

por Maíra Kubik Mano

Estava com muita vontade de escrever sobre um conceito que me causa incômodo – o tal do “crime passional”. Acho que existe um grande equívoco nessa expressão que, de tão repetida, já se sedimentou na subjetividade coletiva. É preciso estranhar as palavras, pois elas dizem muito sobre o que pensamos enquanto sociedade. Não, as palavras não são gratuitas! Embora muitos queiram nos fazer acreditar nisso. Infelizmente, estou absolutamente sem tempo para escrever agora, mas deixo aqui um excelente texto de Maíra Kubik Mano “Crime passional não existe” que foi indicado em “Sugestões de leitura” por Cynthia Semíramis. Prometo que, em breve, contribuirei com esse debate também.

Crime passional não existe

Cá entre nós, crime passional tem um quê de romantismo, não? Quando usamos essa expressão, geralmente é para nos referirmos a alguém que estava tão apaixonado, mas tão apaixonado que acabou cometendo um assassinato.  Ah, o amor… mexe com a cabeça dos homens, deixa eles loucos de ciúme. Como culpá-los? Sempre tão racionais e, de repente, vem uma mulher e bagunça tudo.

Não, eu não acredito nas linhas acima que, ironicamente, acabei de escrever. Mas é assim que muitas pessoas vêem esse tipo de situação: dentro de um contexto quase idílico e idealizado. Quase perdoável.

Para além da absurda falta de reconhecimento da violência sofrida pelas vítimas, uma das responsáveis por essa percepção é a mídia, que insiste em divulgar crimes de gênero como arroubos de paixão.

Dois exemplos recentes são o desaparecimento de Eliza Samudio e o assassinato da advogada Mércia Nakashima. Ambas podem ter sido mortas por seus ex-namorados – no primeiro caso, estamos nos referindo a uma celebridade dos gramados, o goleiro Bruno, do Flamengo; no segundo, a um policial aposentado – mas apesar da cobertura excepcional da imprensa, que dá atenção praticamente diária a cada passo das investigações, a questão é pouco discutida.

A mídia em geral peca pela descontextualização da notícia, mas no caso de crimes como esse a omissão é espantosa. Como não dizer, por exemplo, que a cada quinze segundos – mais ou menos o tempo que você vai levar lendo esse post – uma mulher é espancada no Brasil? E pior: que a maioria dos agressores, 87%, é o atual ou um antigo marido/namorado?

Da forma como a notícia é dada, parece que estamos falando de questões isoladas, de uma relação que fracassou de forma retumbante. A verdade, porém, é que atitudes como essa ganham os jornais todas as semanas, mesmo que seja em uma nota de pé de página.

Não há nada de romântico em ser esquartejada, ou sufocada até a morte, ou executada com um tiro na cabeça, ou eletrocutada. Muito menos por alguém que supostamente deveria te amar. Crime passional não existe, temos que parar de usar essa expressão.

Por Maíra Kubik Mano

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Violência contra as mulheres é diária

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Execução das políticas públicas para a mulher é falha

A violência contra a mulher acontece cotidianamente e nem sempre ganha destaque na imprensa, afirmou a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, após participar da abertura do Fórum de Organizações Feministas para a Articulação do Movimento de Mulheres Latino-Americanas e Caribenhas, neste domingo (11), em Brasília.

“Quando surgem casos, principalmente com pessoas famosas, que chegam aos jornais, é que a sociedade efetivamente se dá conta de que aquilo acontece cotidianamente e não sai nos jornais. As mulheres são violentadas, são subjugadas cotidianamente pela desigualdade”, afirmou ao ministra.

Segundo Nilcéa Freire, esse é um dos temas a serem tratados no fórum que termina amanhã (12) e também da Conferência Regional da Mulher da América Latina e do Caribe, que será aberta na próxima terça-feira (13), em Brasília.

A ministra lembrou dos casos da modelo Eliza Samudio e da advogada Mércia Nakashima. O principal suspeito do desaparecimento e da provável morte de Eliza é o goleiro Bruno Fernandes, do Flamengo, com quem ela teria tido um filho. No caso de Mércia, o principal suspeito é o ex-namorado Mizael Bispo de Souza. O corpo da advogada foi encontrado em uma represa no interior de São Paulo.

“Eliza morreu porque contrariou um homem que achou que lhe deveria impor um castigo. Ela morreu como morrem tantas outras quando rompem relacionamentos violentos”, disse a ministra.

Nilcéa Freire também criticou o fato de a Justiça não ter oferecido proteção à Eliza, com base na Lei Maria da Penha. “Não é bastante termos mais delegacias e juizados se as pessoas que lá trabalham não estiverem capacitadas”, destacou. Ela acrescentou que “muitos crimes têm acontecido porque os agentes públicos que atendem as mulheres subestimam aquilo que elas falam, acham que é apenas mais uma briga, desqualificam a vítima”.

A representante da comissão organizadora do Fórum de Organizações Feministas da América Latina e do Caribe, Guacira César de Oliveira, afirma que as mulheres participantes do encontro buscam pressionar os municípios, estados e o governo federal a estabelecerem metas de combate e de redução desse tipo de violência.

“A gente quer metas que se traduzam em investimentos, recursos públicos, equipamentos, estrutura. Existem muitos compromissos vazios no sentido de que são discursos, mas não se consolidam em obrigação efetiva que mude a vida das mulheres”, enfatizou.

A mulher vítima de violência pode ligar para a central 180 tanto para denunciar agressões quanto para reclamar por ter sido mal atendida pelos agentes públicos. A informação é da Agência Brasil.

Fonte: Diário Gauche

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Patriarcado da violência

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A brutalidade não é constitutiva da natureza masculina, mas um dispositivo de uma sociedade que reduz as mulheres a objetos de prazer e consumo dos homens.

Debora Diniz

Eliza Samudio está morta. Ela foi sequestrada, torturada e assassinada. Seu corpo foi esquartejado para servir de alimento para uma matilha de cães famintos. A polícia ainda procura vestígios de sangue no sítio em que ela foi morta ou pistas do que restou do seu corpo para fechar esse enredo macabro. As investigações policiais indicam que os algozes de Eliza agiram a pedido de seu ex-namorado, o goleiro do Flamengo, Bruno. Ele nega ter encomendado o crime, mas a confissão veio de um adolescente que teria participado do sequestro de Eliza. Desde então, de herói e “patrimônio do Flamengo”, nas palavras de seu ex-advogado, Bruno tornou-se um ser abjeto. Ele não é mais aclamado por uma multidão de torcedores gritando em uníssono o seu nome após uma partida de futebol. O urro agora é de “assassino”.

O que motiva um homem a matar sua ex-namorada? O crime passional não é um ato de amor, mas de ódio. Em algum momento do encontro afetivo entre duas pessoas, o desejo de posse se converte em um impulso de aniquilamento: só a morte é capaz de silenciar o incômodo pela existência do outro. Não há como sair à procura de razoabilidade para esse desejo de morte entre ex-casais, pois seu sentido não está apenas nos indivíduos e em suas histórias passionais, mas em uma matriz cultural que tolera a desigualdade entre homens e mulheres. Tentar explicar o crime passional por particularidades dos conflitos é simplesmente dar sentido a algo que se recusa à razão. Não foi o aborto não realizado por Eliza, não foi o anúncio de que o filho de Eliza era de Bruno, nem foi o vídeo distribuído no YouTube o que provocou a ira de Bruno. O ódio é latente como um atributo dos homens violentos em seus encontros afetivos e sexuais.

Como em outras histórias de crimes passionais, o final trágico de Eliza estava anunciado como uma profecia autorrealizadora. Em um vídeo disponível na internet, Eliza descreve os comportamentos violentos de Bruno, anuncia seus temores, repete a frase que centenas de mulheres em relacionamentos violentos já pronunciaram: “Eu não sei do que ele é capaz”. Elas temem seus companheiros, mas não conseguem escapar desse enredo perverso de sedução. A pergunta óbvia é: por que elas se mantêm nos relacionamentos se temem a violência? Por que, jovem e bonita, Eliza não foi capaz de escapar de suas investidas amorosas? Por que centenas de mulheres anônimas vítimas de violência, antes da Lei Maria da Penha, procuravam as delegacias para retirar a queixa contra seus companheiros? Que compaixão feminina é essa que toleraria viver sob a ameaça de agressão e violência? Haveria mulheres que teriam prazer nesse jogo violento?

Não se trata de compaixão nem de masoquismo das mulheres. A resposta é muito mais complexa do que qualquer estudo de sociologia de gênero ou de psicologia das práticas afetivas poderia demonstrar. Bruno e outros homens violentos são indivíduos comuns, trabalhadores, esportistas, pais de família, bons filhos e cidadãos cumpridores de seus deveres. Esporadicamente, eles agridem suas mulheres. Como Eliza, outras mulheres vítimas de violência lidam com essa complexidade de seus companheiros: homens que ora são amantes, cuidadores e provedores, ora são violentos e aterrorizantes. O difícil para todas elas é discernir que a violência não é parte necessária da complexidade humana, e muito menos dos pactos afetivos e sexuais. É possível haver relacionamentos amorosos sem passionalidade e violência. É possível viver com homens amantes, cuidadores e provedores, porém pacíficos. A violência não é constitutiva da natureza masculina, mas sim um dispositivo cultural de uma sociedade patriarcal que reduz os corpos das mulheres a objetos de prazer e consumo dos homens.

A violência conjugal é muito mais comum do que se imagina. Não foi por acaso que, quando interpelado sobre um caso de violência de outro jogador de seu clube de futebol, Bruno rebateu: “Qual de vocês que é casado não discutiu, que não saiu na mão com a mulher, né cara? Não tem jeito. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Há pelo menos dois equívocos nessa compreensão estreita sobre a ordem social. O primeiro é que nem todos os homens agridem suas companheiras. Embora a violência de gênero seja um fenômeno universal, não é uma prática de todos os homens. O segundo, e mais importante, é que a vida privada não é um espaço sacralizado e distante das regras de civilidade e justiça. O Estado tem o direito e o dever de atuar para garantir a igualdade entre homens e mulheres, seja na casa ou na rua. A Lei Maria da Penha é a resposta mais sistemática e eficiente que o Estado brasileiro já deu para romper com essa complexidade da violência de gênero.

Infelizmente, Eliza Samudio está morta. Morreu torturada e certamente consciente de quem eram seus algozes. O sofrimento de Eliza nos provoca espanto. A surpresa pelo absurdo dessa dor tem que ser capaz de nos mover para a mudança de padrões sociais injustos. O modelo patriarcal é uma das explicações para o fenômeno da violência contra a mulher, pois a reduz a objeto de posse e prazer dos homens. Bruno não é louco, apenas corporifica essa ordem social perversa.

Outra hipótese de compreensão do fenômeno é a persistência da impunidade à violência de gênero. A impunidade facilita o surgimento das redes de proteção aos agressores e enfraquece nossa sensibilidade à dor das vítimas. A aplicação do castigo aos agressores não é suficiente para modificar os padrões culturais de opressão, mas indica que modelo de sociedade queremos para garantir a vida das mulheres.

DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA E PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Fonte: Estadao

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